DO AMOR E DA ESCRITA
por Margarida Rebelo Pinto
"Escrever é uma droga dura", dizia-me o António Lobo Antunes há 15 anos, quando almoçávamos uma vez por semana numa tasca dentro de uma garagem nos Moinhos da Funcheira. Ninguém tem uma existência completa se não visitar lugares como os Moinhos da Funcheira, onde o planeamento urbano nunca existiu, nem tão pouco licenças para as habitações lá construídas. Casas erguidas sem a mão de arquitetos ou engenheiros, com escadarias por fora a cruzar a vista de janelas, azulejos desirmanados nas fachadas, telhados tortos e cercas de diferentes desenhos, frutos de recolha em ferro-velho, lixo e acaso.
"Parece que já estão a licenciar isto", dizia o António com o seu olhar líquido e vago, o mesmo olhar de Bukowski nas entrevistas, aquela expressão de quem já vive tão chateado que nada nem ninguém o pode chatear mais. Bebíamos vinho ao almoço, o António com gosto e eu por cerimónia, a mousse de chocolate era deliciosa e troçávamos do mundo com aquela crueldade subtil que só os escritores partilham.
"A escrita é uma droga dura, agora a bicicleta pensa que isto é fácil, mas vai ver daqui a uns anos quando a sua vida for um inferno", dizia-me enquanto acendia um cigarro e eu respondia-lhe "não seja tão negativo António", porque pensava que ele era um fatalista sem cura, e afinal agora dou-lhe razão. Nunca me importei que me chamasse bicicleta porque sempre que o fazia, o seu olhar ficava menos baço e subia-lhe à cara um sorriso fácil de miúdo de liceu.
Tinha razão, o António. Todos os dias de manhã cedo me sento à secretária, quando embalo e as palavras chegam sem atrito o dia é bom, mas se por acaso não vêm, fico à espera como a mulher da canção do Chico Buarque, "sentada, pregada na pedra do porto, com o seu único e velho vestido cada dia mais curto". A escrita e o amor são muito parecidos, ou então sou eu que os vivo de igual forma. O escritor aprende a fazer tudo em silêncio. Mesmo aqueles que preferem escrever em cafés, usam o ruído em volta para se isolarem do mundo. Escrever e amar são atos solitários. Cada um escreve como sabe e ama como pode. Escrevemos com erros, amamos com ainda mais erros. Amamos de menos e demais, no tempo errado e de modo inadequado, muitas vezes amamos mais quem não nos sabe amar do quem merece o nosso amor. Acreditamos que amamos mais os filhos do que eles nos amam, pensamos que esquecemos quem amámos, pensamos que o nosso amor vence tudo quando a vida vence quase sempre o amor. O mundo é todo nosso e conseguimos agarrá-lo enquanto escrevemos, o mesmo se passa quando amamos. Nunca temos fome, nem sede, nem sono, nem medo de falhar. O amor empresta-nos uma capa de super-heróis. Vencemos tudo, só não nos vencemos a nós mesmos, porque o amor pode dar cabo de nós.
Nunca mais fui almoçar aos Moinhos da Funcheira, imagino que as casas já foram silenciadas e que as ruelas de terra batida já se civilizaram com a chegada do deus alcatrão, mas quando me lembro do António e das nossas conversas, oiço o meu coração a dar-lhe razão. O amor é uma droga dura, nem todos aguentam, e quando nos entra para as veias, é muito difícil esquecer tudo o que nos faz sentir. Amamos sempre, porque se não amarmos, temos a sensação de que o mundo acaba. Na verdade nunca acaba, quem acaba somos nós, mas se não vivermos para contar o que vivemos, já cá não estamos para contar como foi, portanto vai dar ao mesmo. Ainda assim, é melhor amar do que não sentir nada no peito e usar o coração como uma máquina de fazer massa, fazer fios das emoções e deixá-las cair num prato, como pasta para carbonara.
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