sexta-feira, 23 de março de 2018

Eu podia ter deitado fora o papel de cozinha que levei para servir de guardanapo ao almoço. Era o equivalente a 3 guardanapos. Eu podia ter reutilizado o saco em que levei o almoço. Mas não. Voltei a guardar tudo no saco maior de papel. Parvoíce. Ou não. No fim do dia de trabalho percebi porque tinha guardado tudo. Mais uma vez, nada acontece por acaso (e não me venhas tu com as tuas incredulidades, que é mais fácil acreditar que somos comandados por uma Entidade superior que do alto tudo gere - acredita no que quiseres que eu faço o mesmo e respeito a tua opinião).
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Caminhava para o carro quando me apercebi de uma senhora que inquieta olhava para algo na estrada. Pensei ser um pombo fatalmente esmagado. Deixou que o trânsito passasse e visivelmente constrangida (a posição do corpo curvado, os braços em arco formando um qualquer aconchego) pegou no que estava na estrada, que entretanto confirmei que não era um pombo, e levou para o jardim em frente. Nisto, sobre as nossas cabeças voa um pato real macho em duração ao jardim. Ao aproximar-me cada vez mais, vi a cara transtornada daquela mulher que levava nas mãos uma pata acabada de atropelar. Saí do meu caminho e fui consolá-la. A senhora, de lágrimas nos olhos, só dizia, "ainda tem o coração a bater..." O animal estava morto. Ventre perfurado, bico torcido, esfolado no peito... Estava quente, mas morto. Com a morte nas mãos, sentiu a vida esvair-se quando o coração deixou de bater e como se tudo parasse naquele momento talvez se tivesse aberto espaço para alguma memória dolorosa voltar aquele rosto sofrido. Naquela emoção imensa, não conseguia pensar adequadamente, queria ir deixar o corpo do bicho junto dos seus parentes vivos. Eu tinha de tomar uma atitude. Sugeri embrulhar o corpo no papel de cozinha que tinha. Concordou. Juntas tentámos dar alguma dignidade aquela morte. Coloquei-o dentro do saco e disse-lhe "quer que seja eu a tratar ... para a senhora não ver ?" Assentiu em lágrimas já soltas. Virou as costas e lá foi meio desorientada com as mãos ensanguentadas enquanto eu coloquei o saco num dos lixos suspensos do jardim. Ela não voltou a olhar para trás. E ao ver aquele corpo carregado de sofrimento e dor a afastar-se pensei numa série de coisas sobre a vida. Sentimentos, vidas difíceis, solidão... É Primavera, os patos estavam no namoro e como todos os enamorados distraíram-se. A senhora estava também preocupada com o macho que nem devia ter percebido... Garanto que percebeu. Agora está sozinho, talvez como a senhora (espero que não pois é uma boa alma cheia de amor).
Agradeço o facto do meu caminho se ter cruzado com o desta senhora.

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