O sol aquece enquanto o mar enrola e o vento desfaz. Já não sou o que fui e estou cada vez mais igual. O dia vai e a noite vem. A dona Branca, lá do alto, dá força ao sonho e aconchega os amantes. O ecrã ilumina os olhos vermelhos que focaram números e letras todo o dia. A boca calada, agora mais descontraída mas sem ousar pronunciar palavra. O pensamento, esse é livre. E recorda o dia, reconstitui o que se passou e substitui cada cena com soluções ideais para os problemas surgidos. Para quê... já vem tarde. Prepara o dia seguinte para nada esquecer. Mesmo assim, é melhor puxar da caneta e anotar. Que feliz que sou ! Agradeço. Já tudo dorme. Ai, este coraçãozinho, não se pode deixar falar se não ... ainda vem uma lagriminha... viro-me para o outro lado e apago a luz. Acordo antes da hora com pequenos gemidos. Percebo que é a cadela a querer ir à rua. Tomo coragem e lá me endireito devagarinho, que isto das articulações aos quarenta e tal, tem muito que se lhe diga ! Vou por aí abaixo e toda ela se abana feliz de me ver. O chão coberto de pelo. Abro a porta e pego na vassoura. Começa mais um dia. E pergunto-me porque tenho de suportar determinadas chatices todos os dias vindas de gente parva quando sou tão feliz na minha pequenez, na minha casa, mexendo na terra ou pintalgando umas telas, entre um passar a ferro ou cozinhando umas iguarias, recolhendo umas ervas para as maleitas... Este é o meu mundo, aquele que nunca me cansou, onde sempre volto porque me faz feliz. Este receio de perder o salário certo anula aos poucos esta vontade de viver livre. Estou presa à sociedade e às suas regras, aos seus hábitos doentios que me fazem sentir de facto diferente quando sou a única que numa mesa de mulheres não tem unhas de gel e nem sequer pintadas. E subitamente dá-me vontade de rir. Sou muito, mas muito mais livre do que a maioria delas !
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